Living The Dream
Ele volta a acreditar. Buckley filho e Sinatra sempre estiveram certos.
Just live the dream, baby.
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O ceticismo filosófico moderno não é um dogmatismo negativo, como o foi o “ceticismo acadêmico” [1] de Arcesilau e Carnéades por ter sustentado que a verdade é incognoscível (essa afirmação é verdadeira? Se é, então como a conhecemos?). Também não se trata de niilismo: atitude de desespero expressada numa “descrença generalizada”. Ora, (des)crença é crença às avessas. No caso do niilismo, “crença na verdade de que todas as crenças são falsas”, o que é um nonsense.
O ceticismo filosófico moderno, que surgiu e se desenvolveu pari passu com as ciências empíricas[2], também não se confunde com a corrente do pensamento conhecida como “relativismo”. Este – o relativismo, mormente sua versão mais radical, o “pós-modernismo” – nega a existência de uma verdade objetiva e da universalidade de qualquer valor (o que o torna não o fundamento ideológico da tolerância, mas a justificação da permissividade e de qualquer conduta “aquém” do bem e do mal). De modo diverso, o ceticismo moderno, “paracientífico”, apenas nega a “certeza absoluta”, a pretensão de que se pode atingir um conhecimento abrangente “indubitável”.
Vale dizer: tirante as verdades tautológicas (caso da verdade matemática), o cogito cartesiano e algumas correspondenciazinhas biunívocas banais entre ideia e realidade (p.ex., “o cientista Richard Dawkins tem uma cabeça”), o fato é que, a princípio, “tudo é incerto” (Montaigne), e que, “se tudo é incerto, também não é certo que tudo é incerto” (Pascal). Em síntese, o ceticismo hodierno parte do princípio autorreferente de que “tudo é duvidoso, inclusive esta afirmação” (André Comte-Sponville).
Esse novo ceticismo, portanto, é coerente, uma vez que inclui a si mesmo em seu próprio questionamento — consistência esta que o obriga a conferir à posição contrária (isto é, aos dogmatismos) o benefício da dúvida.
Crer é sustentar a verdade de um enunciado não-evidente, mas admitindo, ao mesmo tempo – caso o crente seja “honesto” –, a possibilidade de estar enganado. Pois, afinal, o que não é evidente não é certo, mas duvidoso;[3] logo, algo de que não se sabe, mas em que se crê ou (des)crê. O mesmo não se pode dizer de algumas verdades matemáticas simples, que não são objetos de crença, artigos de fé, mas puro saber. Com efeito, não faz sentido dizer “creio que 2 + 2 = 4”; ora, nisso eu não “creio”: disso eu “sei”.
O ceticismo moderno, portanto, não nega a crença e a fé, antes as pressupõe.
Mas há um porém: o ceticismo (do grego: skepsis) é questionamento, e o questionamento, por sua vez, é uma avaliação das ideias e dos dados empíricos levada a cabo pelo pensamento. Ora, o pensamento – e aqui me refiro ao pensamento dito “conceitual” – tem as suas leis, de modo que, ao contrário das crenças religiosas, as crenças dos céticos não são arbitrárias, baseadas unicamente na fé, mas fundamentadas naquilo que os possibilita questionar: as regras do cogito, isto é, as categorias e os princípios da lógica e da matemática. Essas categorias e princípios são intersubjetivos, comuns a todos os sujeitos pensantes. Pois, se não fosse assim, não haveria possibilidade de diálogo, de entendimento e de consenso entre os homens.
Isso não significa que as leis que regem o pensamento coerente (as leis da inferência, objeto da Lógica) sejam indubitáveis. Decerto que não o são e que nem mesmo a matemática está acima de qualquer suspeita, uma vez que de seus axiomas pode-se chegar não apenas a verdades, mas também a paradoxos. Questionar a racionalidade do pensamento é preciso, e foi por ter sido questionada que ela (a racionalidade, a razão) se desenvolveu, superou muitos dos seus paradoxos, tornou-se mais metódica, o que conferiu ao pensamento maior grau de autonomia em relação às demais faculdades psíquicas: o sentimento e a vontade.
Ora, o que se disse acima sobre o ceticismo do nosso tempo coincide, em larga medida, com as considerações de Alfred North Whitehead (matemático e filósofo) acerca do que ele denomina “Razão especulativa”, que criou a “Razão metódica”, mas que, no entanto, a questiona constantemente.
“A Razão especulativa é, em sua essência, alheia aos métodos. Sua função é desvendar as razões gerais, que se situam acima das razões restritas, compreender todos os métodos como coordenados numa natureza de coisas que só é compreensível transcendendo-se a todos os métodos. Esse ideal infinito nunca será atingido pela limitada inteligência humana. Entretanto, o que distingue o homem dos animais, e alguns homens de outros, é a presença, em sua natureza, ainda que de uma forma hesitante e vaga, de um elemento perturbador, que é a busca do inatingível. Esse elemento é aquele toque de infinito que impulsionou os povos para a frente, muitas vezes ao encontro de sua própria destruição. É um tropismo pelo facho de luz que acena ao longe — pelo sol que viaja em direção à finalidade última das coisas, e pelo sol que ressurge sempre de sua origem. A Razão especulativa se volta para leste e para oeste, para o começo e para o fim, como que espreitando para além das fronteiras do mundo”.[4]
Mesmo sendo a racionalidade do pensamento questionável em alguma medida, de outra coisa não dispomos para produzir conhecimentos acerca da natureza e de nós mesmos. Aliás, como declarou Freud, “Existem muitas questões a que a ciência atualmente não pode dar resposta. Mas o trabalho científico constitui a única estrada que nos pode levar a um conhecimento da realidade externa a nós mesmos” (S. Freud; “Além do Princípio do Prazer”, 1920).
Ademais, como esse conhecimento é a nossa principal arma de sobrevivência, e por ter-se demonstrado um instrumento tão eficaz de controle sobre as forças naturais, então o melhor é nos apoiarmos firmemente no pensamento lógico e no método científico, admitindo, porém, que seus postulados e axiomas também encerram uma margem de incerteza (uma margem pequena, diga-se de passagem).
Não é fácil conviver com a dúvida. Se tenho dúvidas, sou obrigado a escolher, a exercitar a minha liberdade, a me responsabilizar pela escolha feita e pelos meus atos, a admitir que “posso estar errado”. A dúvida é a sombra da liberdade e tem por corolário a angústia e a responsabilidade moral.
Penso que a certeza, “a crença na precisão absoluta da minha crença”, é o mais velho antídoto contra a ansiedade que sempre acompanha o ato da escolha. Pois, se não tenho dúvidas acerca do caminho a trilhar, não estou escolhendo, não estou a agir livremente, mas tão-somente obedecendo a um imperativo, que pode ser a palavra de Deus, o Destino ou mesmo a Razão. A certeza absoluta tranquiliza a consciência, nos faz agir sem remorsos e sem ela os genocidas em nome de Deus ou da Razão não dormiriam em paz.
É porque temem a liberdade, é por não quererem assumir responsabilidade moral que os homens costumam se deixar levar por certezas. Se um dia descobrem que o que motivou a sua ação era um erro, amaldiçoam Deus, o Destino ou a Razão, lamentam o fato de terem sido “enganados” (colocam-se sempre numa situação passiva) e, tranquilos, permanecem com suas outras certezas.
Ao contrário do que muitos pensam, o cético não é um frívolo diletante que tem por hobby questionar tudo e que faz da filosofia uma disputa entre egos, um joguinho de salão. Ao contrário, há mesmo um propósito moral no ceticismo filosófico. Pois, ao fazer da incerteza um dos princípios do pensamento humano, o que o filósofo cético também pretende é destruir esse escudo da covardia, essa negação da liberdade, essa arma da intolerância, isso que é a categoria central de todos os sistemas filosóficos fechados imunes à discussão e ao questionamento e que apenas servem de ideologia para os inimigos da sociedade aberta: o mito da certeza absoluta.
Penso que nós, céticos, ou melhor, “ceticistas”, tivemos sucesso em nossa empreitada. Sim, ao menos no front filosófico, destruímos o encouraçado do dogmatismo. Deste só restam destroços e alguns náufragos que, para não se afogarem, fazem das tautologias — como, por exemplo, “o existente existe” — e do cogito cartesiano sua tábua de salvação.
Claro, existem muitos “não-céticos” que estão absolutamente certos das virtudes da sociedade aberta. Estes costumam criticar o cético pelo fato de ele não saber com certeza se assassinar uma criança indefesa é moralmente justificável ou não, ou porque “diz não saber com certeza que uma ditadura sanguinolenta é defensável ou não” Não percebem esses “dogmáticos de boa vontade” que o que ameaça a sociedade aberta não é a incerteza quanto à verdade dos seus princípios, mas a certeza compartilhada por muitos, inclusive por supostos paladinos da democracia (Nixon, Kissinger, Sharon, Bush…) de que assassinar crianças é muitas vezes moralmente justificável: essa mesma certeza ou convicção inabalável tão característica dos que se arvoram os guardiões da Razão, do Pensamento Correto ou da Verdade e que, por isso, não estão muito dispostos a perder tempo com discussão, com a busca do consenso mediante o diálogo e outras “masturbações” democráticas, motivo pelo qual chegam mesmo a defender ditaduras sanguinolentas sempre que lhes convém. Como, por exemplo, o “racionalista” e “libertário” de direita Milton Friedman, que certa vez teceu elogios rasgados a Pinochet e justificou sua tirania.
É investindo contra o mito da certeza absoluta ou reduzindo-a ao ponto de jamais se transformar em instrumento de dominação política que se garante “quase certamente” a sociedade aberta.
Ao admitir que nem eu nem você detemos o monopólio do conhecimento certo e indubitável, não estou senão aceitando como razoável a atitude de considerar seus contra-argumentos e, por extensão, de reputar como legítimas todas as opiniões diferentes. Essa incerteza, que está na margem tanto da minha quanto da sua crença, é o que torna nossos pontos de vista iguais, malgrado as dessemelhanças. Também é a incerteza a justificação racional da minha e da sua liberdade de questionar, concordar, discordar. Ora, a aceitação do outro (do diferente, da opinião das minorias), a igualdade entre os interlocutores e a liberdade de questionar são tanto os princípios da razão quanto da democracia.
E nem é preciso ter certeza da verdade desses preceitos para defendê-los firmemente, pois o que os sustenta e o que lhes dá firmeza não é outra coisa que a incerteza intrínseca do conhecimento: o princípio fundamental de que tudo é incerto, inclusive esta afirmação.
Manuel Bulcão
Fevereiro/2002
[2] O seguinte texto do físico Richard P. Feynman, extraído o livro “O Significado de Tudo” (Portugal, Editora Gradiva), ilustra bem a simbiose entre o ceticismo filosófico moderno e as ciências empíricas: “Se não fôssemos capazes ou não desejássemos olhar em novas direções, se não tivéssemos dúvidas e não soubéssemos reconhecer a nossa ignorância, nunca chegaríamos a ter idéias novas. Não haveria nada para verificar, pois já conheceríamos a verdade. Aquilo a que hoje chamamos conhecimento científico é, pois, um corpo de afirmações com diversos graus de certeza. Algumas são muito incertas, outras são quase certas, mas nenhuma é absolutamente certa. Os cientistas estão habituados a isso. Sabemos que é consistente conseguir viver sem saber toda a verdade. Algumas pessoas perguntam: «Como é que conseguem viver sem saber?» Não percebo o que querem dizer com isso. Sempre vivi sem saber. É fácil. O que quero saber é como é possível saber”.
[3] André Comte-Sponville, filósofo cético-racionalista francês, defende que nem as evidências “ululantes” são inquestionáveis, uma vez que consistem em estados d’alma, e os estados d’alma são “alteráveis” por modificações neuroquímicas, deliberadas ou não.
[4] WHITEHEAD, A. N. A Função da Razão. Brasília: Editora UNB, 1988; p.31.
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